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Channel: O RESGATE FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA
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“Notas de um Expedicionário Médico” Alípio Corrêa Netto

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Estamos acostumados a ler muitas matérias sobre batalhas, táticas, armamentos, relatos etc… Mas é muito difícil ler sobre os médicos e sobre historias dos hospitais de campanha. Segue abaixo um texto extraído do livro “Notas de um Expedicionário Médico” de Alípio Corrêa Netto
Esperamos que esse texto possa mostrar um pouco do sentimento dos médicos, enfermeiros e soldados em geral passado nos hospital de campanha da FEB em Valdibura – Itália.
No dia 04/12/1944 ocorreram dois acontecimentos que marcaram esta data: um é triste e o outro auspicioso.
O primeiro está ligado ao rapazola operado anteontem. Já perfeita­mente bem, sem temperatura pouco elevada, respiração tranquila, embora queixoso de muita dor. Pela manhã sentiu ansiedade respiratória. O enfer­meiro nada nos comunicou, uma vez que eram bons o pulso e a pressão arterial. Ao passarmos pela enfermaria, antes mesmo de ir ao refeitório para a primeira refeição, notamos a dispnéia do nosso ferido; preocupamo-nos, corremos para providenciar a aspiração traqueal, por parecer-nos certo que o sangue coagulado nos seus brônquios o sufocaria rapidamente. Não houve mais tempo num minuto morria, sereno, suavemente, conservan­do ainda a fisionomia inocente e meiga de um meninão em repouso. Pedro Laurindo Filho deu sua vida em defesa de um ideal, as suas feições pare­ciam indiferentes ao supremo sacrifício. O herói tombou desconhecido, o esquecimento pesará sobre seu túmulo.
Um soldado é nada quando a inconformidade leva os povos às lutas fratricidas, mas muitos corações enlutaram-se bem longe da cena dramática e as lágrimas correram também em silêncio.
O outro caso foi o reverso da medalha. Baixou ao hospital pelas 16 horas um sargento do 11.° R.I. (11.° Regimento de Infantaria), gravemente atingido por estilhaço de granada na região cervical, produzindo grande hemorragia. O ferido permaneceu no campo de batalha durante muitas horas, antes de ser recolhido. Ao chegar encontrava-se pálido, palidez ma­cilenta da morte, sem pulso, sem movimentos respiratórios, não se sentia, nem ouvia o seu coração. O médico norte-americano, que o atendeu na enfermaria de choque, registrou na sua papeleta; “Rac. 16h25min hr-3.12.44 Pulse and cardiac impulse not perceptible, occasional shallow respiration. Received artificial respiration, inhalation 02, intracardiac adrenaline (2cc). Expired — 16:40 hr a R.B.” (Recebido às 16:25 de 3.12.1944. Pulso e batimento cardíacos imperceptíveis. Respiração superficial ocasional. Rece­beu respiração artificial, inalação de oxigênio, adrenalina intracardíaca (2cc). Morreu às 16:40h)’.
Estava tudo terminado. Mais um a figurar na galeria dos heróis igno­rados. Mas assim não quis o destino, que anda pelo mundo a fazer-nos sur­presas, ora amargas, ora felizes. Ao voltarmos do jantar, aí pelas 16h45min horas um dos nossos colegas teve a curiosidade de conhecer a fisionomia do “morto”, já que vestia farda brasileira e poderia ser algum conhecido. Levantou a coberta que velava o rosto do “cadáver”, nesse exato momento o paciente emitiu fraquíssimo esforço inspiratório, desses que assinalam os últimos indícios de vida. Esperou atento alguns segundos e o tênue sinal vital repetiu-se, embora mais fracamente, mas perfeitamente apreciável; também a ligeira coloração rósea da face se tornava indicativa de alguma circulação sanguínea. Foi chamado de novo o colega americano que no momento estava de serviço; a ele entregou-se a fundo à “milagrosa” tarefa de “ressurreição”. Não era possível pensar em encontrar uma veia nos membros, tão rapidamente como exigiam as circunstâncias para a trans­fusão. Esta foi iniciada pelo corpo cavernoso. Limpeza da garganta e apli­cação de oxigênio sob pressão através de cânula metida na traqueia. A seguir, dissecaram-se duas veias no braço e perna, e dois aparelhos bem instalados vertiam, para dentro do sistema circulatório, duas correntes con­tínuas de sangue. E o líquido generoso foi abrindo, através daqueles tecidos enregelados, já quase dominados pelo frio da morte, a estrada maravilhosa da vida. O pulso surgia como por encanto, a respiração restabeleceu-se, o doente pode ser radiografado.
Às 20 horas depois de três horas de luta com a morte, estava o nosso sargento redivido com a pele quente e já em plena consciência. Operamo-lo a seguir. Ele suportou o longo ato cirúrgico, saindo da sala, três horas de­pois, em pleno equilíbrio metabólico.
O nome dado à enfermaria de choque “ressuscitation ward” não esta­va muito longe da realidade, pela tradução literal “enfermaria de ressur­reição”. Este ferido morreu num hospital, teve atestado de óbito, passado, aliás, por um bravo lutador no tratamento de estado de choque, o capitão R. B. é, quase, portanto, verdadeira ressurreição.
Durante o tempo que o homem estava sob os nossos cuidados passou bem, embora mentalmente confuso. Não temos certeza se a confusão era consequência da isquemia cerebral devida à gravidade de sua afecção ou se não era um pouco de mistura da magnificência que entrevira no além com o terra-a-terra do nosso mundo. Jamais tivemos ânimo de indagar. Res­peitamos a paz espiritual que o nosso sargento muito merecia.
Blog Ecos da Segunda Guerra

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