Collecchio, Itália, 2 de junho de 1945.
Prezada Senhora,
Peço-lhe desculpas, primeiramente, por atravessar-me deste modo, uma vez que não nos conhecemos.
Com o devido respeito, permita-me apresentar: sou o capitão Evaristo José Pereira. Durante os primeiros meses da guerra, seu noivo, o tenente Leonardo Campanaro foi meu comandado.
Esta breve missiva tem por objetivo esclarecer os fatos do lamentável falecimento de Leonardo, indo além da comunicação padronizada que o Ministério da Guerra deve ter lhe apresentado. Tenho certeza de que ele aprovaria minha atitude, eis que os fatos por ele protagonizados não devem ser ignorados. Impõe-se que a história seja contada nos pequenos detalhes, de modo a preservar a memória do homem extraordinário que foi Leonardo. Por isso mesmo, peço-lhe perdão pelos eventuais excessos nas descrições que se seguem. Penso que a senhora tem o direito de saber o que realmente aconteceu.
A primeira vez que vi Leonardo foi durante o deslocamento do primeiro escalão da Força Expedicionária Brasileira, a FEB. A bordo do navio de transporte General Mann, aquele distinto oficial chamou-me a atenção por dois motivos. Primeiro, suas proeminentes orelhas de abano, que lhe conferiam um ar juvenil; segundo, o nome que ostentava no uniforme, denunciando sua origem italiana. Perguntei-lhe por que não optara por usar seu primeiro nome, só para evitar confusões, já que a Itália tinha se alinhado à Alemanha, sendo, portanto, inimiga. Ele, com toda a educação, corrigiu-me, afirmando que seu primeiro nome também tinha origem italiana e que, mais importante, nossos inimigos eram os fascistas e os nazistas e não o povo italiano ou o alemão. Ele estava certo. Era mais do que apropriado que usasse seu nome de família.
O navio estava apinhado e todos tinham muito medo dos submarinos alemães. Havia no total cerca de cinco mil homens e para a nossa própria segurança, desconhecíamos nosso destino. Leonardo conhecia jogos de cartas e isso ajudava a aliviar um pouco os nossos temores. No entanto, foi só quando chegamos ao ponto final, em Nápoles, no dia 16 de julho, que aquele peso, o medo de morrer sem ao menos chegar no teatro de operações, deixou os nossos ombros.
Acampamos em Bagnoli e passamos algumas semanas em treinamento, recebendo armamento, munição e equipamentos dos americanos. Durante esse tempo Leonardo e eu nos tornamos próximos. Certa vez, depois de um exercício de ataque e infiltração, enquanto limpávamos o armamento, ele me contou que o avô havia lutado na guerra do Contestado. Achei aquilo extraordinário, porque o meu avô também tinha estado naquela guerra. Ele me disse que guardava a espada que tinha pertencido àquele homem e que, quando regressássemos, ele me mostraria a relíquia.
Leonardo contou-me também que antes de entrar para o Exército ajudava o pai em uma tinturaria. Que ambos tinham migrado para São Paulo, em busca de melhores oportunidades, logo depois que ele ficou órfão de mãe. Disse-me que trabalhar para o pai era algo próximo a um regime de galés, mas que havia um lado positivo. Segundo ele, o pai permitia que estudasse e, assim, ao tempo de prestar o serviço militar, Leonardo teve o êxito de ser matriculado no CPOR da capital paulista. Ao final de um ano, foi nomeado oficial temporário (R/2) de infantaria. Quando seu tempo no Exército terminou, disse-me, voltou a trabalhar com o pai. Prosseguindo nos estudos, entrou na faculdade de direito. Nesse ínterim, segundo me contou, conheceu uma garota chamada Roberta, por quem se apaixonou. Dizia ser a mulher mais bela entre Manaus e Porto Alegre.
Certa vez, Leonardo mostrou-me uma foto em que ele e a senhora apareciam juntos. Era um retrato desses tirado em frente a uma parede pintada, um cenário imitando um rio ladeado por pinheiros. Tanto a senhora como ele trajavam roupas de domingo, inclusive chapéu, e sorriam largamente. Uma imagem que, se me permite dizer, evidenciava o quão felizes deviam estar.
Ao mostrar-me esse instantâneo, meu amigo confidenciou-me que ele e a senhora eram obrigados a se encontrar às escondidas.
Aliás, perdoe-me por conhecer alguns de seus segredos. A guerra acaba unindo os homens, fortalecendo laços de amizade. Não são poucas as vezes em que desabafamos nossos problemas uns aos outros, contando fatos que normalmente manteríamos em nosso íntimo.
De todo modo, segundo Leonardo, os pais da senhora não aprovavam o relacionamento entre vocês. Algo que tinha a ver com as convicções políticas deles, embora isso nunca tenha ficado claro para mim. Mas, de qualquer forma, de acordo com as palavras de meu amigo, ‘o amor prevaleceu’ e vocês continuaram a se ver em segredo.
Quando a guerra estourou e o Brasil decidiu enviar um contingente à Itália, Leonardo, assim como outros oficiais da reserva, foi convocado para integrar a I Divisão de Infantaria Expedicionária, como membro efetivo do 6º Regimento de Infantaria. Patriota exemplar que era, aceitou a incumbência, especialmente porque sentia um forte apego às suas origens. ‘Era meu destino’, costumava afirmar.
Disse-me, porém, que nas semanas que antecederam o embarque, dois fatos o deixaram abalado. O primeiro foi o falecimento do pai, a quem muito estimava. Esse triste acontecimento, contudo, foi compensado com a notícia de que a senhora estaria esperando um filho. Devo dizer-lhe que Leonardo falou-me diversas vezes sobre a expectativa de ser pai e nessas horas, acredite-me, seus olhos brilhavam e ele se emocionava muito. Contou-me que desejava se casar com a senhora, mesmo sem a aprovação de seus pais, assim que regressasse da Itália.
Naturalmente, contei a Leonardo um pouco da minha história também. Disse-lhe que tinha feito a Escola Preparatória de Porto Alegre e que depois fui para a Escola Militar do Realengo, de onde saí oficial de infantaria. Do Rio de Janeiro segui para Caçapava, em São Paulo, onde passei a servir no 6º RI. Assim como Leonardo, também deixei uma garota à minha espera.
Todos nós que estávamos na Itália sabíamos que era questão de tempo até entrarmos em combate. Por isso vivíamos sob uma tremenda tensão. Logo marchamos para Tarquínia, ao norte, e nos incorporamos ao V Exército Americano. A frente de batalha se localizava próxima ao rio Arno, nas imediações de Pisa, onde os alemães ofereciam uma enorme resistência. Em 16 de setembro, nosso regimento teve seu batismo de fogo. Marchamos em direção a Massarosa, Bozzano e Chiesa. Estávamos nos aproximando da famosa Linha Gótica alemã, a mais fabulosa linha de defesa jamais estabelecida na Europa, um orgulho da propaganda nazista, que se estendia por 250 quilômetros, do Mar Tirreno ao Adriático. Nosso objetivo era, em suma, era rompê-la. Ao contrário das expectativas pessimistas, os primeiros combates ofereceram pouca resistência. Em Camaiore, por exemplo, os alemães simplesmente debandaram com a nossa chegada.
Porém, a partir daí, os embates foram se tornando mais renhidos. Com crescentes baixas tomamos Monte Prano, Borgo e Fornoli. Pude ver que Leonardo era um bom líder. Seus homens confiavam muito nele. Tomava sempre a iniciativa, sem afastar-se da estratégia definida pelo comando. Tinha muita bravura, vou lhe dizer. Era talvez um dos homens mais corajosos que já conheci. Certa vez, eu o vi avançar em meio a uma tempestade de artilharia para resgatar um soldado ferido que pertencia a outro pelotão. Era o tipo da coisa que todos éramos ensinados a fazer, mas que pouco cumpriam. Avançar em meio à artilharia pesada beira o suicídio, mas ele não teve medo e trouxe aquele garoto de volta à segurança. Eu testemunhei esse fato com meus próprios olhos e realmente fiquei impressionado.
Infelizmente, outros brasileiros não tiveram a sorte de ter alguém como Leonardo por perto. Ao chegarmos ao Vale do Serchio havíamos perdido muitos soldados. Nas imediações de Gallicano, nossa companhia foi incumbida de tomar uma fábrica de munições. Eram os primeiros dias de outubro. A reação tedesca veio pesada e com uma intensidade que não havíamos experimentado até aquele momento. Já no início eu podia adivinhar que perderia muitos homens naquele dia. Honestamente falando, senti que teria sorte se eu mesmo escapasse com vida. Senti medo de morrer. Vi alguns homens ao meu lado serem varridos da existência. Uma cena terrível. Jovens desesperando-se ao ver que não escapariam do abraço da morte, percebendo que os anos que teriam pela frente, ao lado de uma esposa, de filhos e de amigos jamais existiriam. Foi muito triste.
Devido à intensidade dos fogos, tivemos que solicitar reforço, pois aquele era um ponto estratégico muito importante. Tínhamos que conquistá-lo. Outra companhia juntou-se a nós e depois de três horas, enfim, os alemães se retiraram. Ao reunir meus homens, ao final daquela jornada, percebi que meus temores estavam certos. As baixas eram pesadas. Um preço talvez alto demais. Porém, o que me deixou mais aflito, embora eu não pudesse expressar, não na frente de todos, foi que o tenente Leonardo não se juntou a nós. Estava desaparecido. Alguns o tinham visto em meio aos fogos, mas ninguém sabia de seu paradeiro. As horas se arrastaram sem qualquer notícia de meu amigo. Foi o dia mais longo da minha vida. Eu estava prestes a mandar que se realizasse o inventário de seus pertences quando o vi caminhando em meio à neblina do fim de tarde, vindo em direção ao posto de comando. Parecia uma assombração, completamente sujo, com o uniforme acabado. Tinha algumas escoriações, manchas de sangue e de pólvora, mas estava bem. Senti um alívio tremendo ao vê-lo inteiro. Contou-me ele que tinha ficado preso em alguns escombros e que perdera a maior parte do enfrentamento. Estava envergonhado, dizia, pois não pôde ajudar ninguém. Teve que permanecer quieto até que tudo estivesse acabado para aí sim livrar-se em segurança da parede que tinha caído sobre ele. Suas explicações soavam um pouco desconexas, mas eu estava feliz por vê-lo diante de mim. ‘Não foi dessa vez’, disse-me.
As batalhas prosseguiram e, apesar das baixas, o moral da tropa era elevado. Porém, ao final de quarenta e cinco dias de combate, nosso regimento estava esgotado. Como se soubesse disso, uma tropa alemã articulou-se para lançar nos atacar. Nessa ocasião, estávamos estacionados num pequeno povoado à margem do Serchio. Durante a madrugada os tedescos chegaram. Não era uma companhia regular, da Wermacht, mas da SS, um grupamento de elite. Era dia 31 de outubro de 1944. Jamais esquecerei essa data.
Os alemães nos atacaram como fanáticos e conseguiram cercar nosso posto de comando, que havia sido montado numa velha casa colada às posições mais avançadas. Nossas ordens eram defender o local até a última bala, para permitir que o pessoal da retaguarda fugisse. Queira desculpar-me a expressão, senhora, mas foi a visão do inferno. Por horas ficamos aprisionados naquele local resistindo à invasão como podíamos. Quando começou a amanhecer, recebi a informação de que a tropa estava em segurança e que só restávamos nós dentro da casa, em torno de vinte pessoas. Tínhamos que escapar pelos fundos. Enquanto os oficiais, uns cinco ao todo, escoravam as portas, os demais se dirigiram para a parte os fundos, na esperança de fugir por um buraco. Porém, alguns alemães conseguiram entrar pelo telhado e logo chegariam até nós. Restavam apenas quatro brasileiros agora confinados ao segundo andar. Não tínhamos a menor ideia se o pessoal que fugira pelos fundos tinha conseguido chegar às nossas linhas. Não tivemos tempo para nos preocuparmos com isso. Os passos apressados dos invasores, cuspidos pelo vento, chegaram até nós. Lembro-me de ter visto Leonardo e mais dois tenentes gritarem para mim: ‘capitão, pela janela’. Saltamos todos. Quando chegamos ao chão saímos rapidamente em direção às nossas linhas, que tinham se reagrupado à retaguarda e agora podiam nos dar cobertura até que chegássemos a eles. Corri o mais rápido que podia, ignorando o cruzar das balas ao meu redor. Consegui chegar a um local de vegetação densa e ali, escondido no local a meio caminho da tropa alemã e dos brasileiros, virei para observar se alguém me perseguia.
Podia ver a casa e muitos alemães se posicionando para atirar contra nossos homens, que agora se encontravam abrigados pela floresta. Pareciam não ter notado a nossa fuga. Vi que próximo à casa um homem rastejava lentamente, o rosto colado ao chão, enquanto o mundo explodia em tons rubros sobre sua cabeça. Quando ele ergueu a cabeça reconheci-o. Era Leonardo. Tinha a expressão determinada, de quem sabe o que é preciso fazer. Mesmo de longe, eu podia dizer que ele não estava ferido, ainda que alguma coisa, um tornozelo torcido talvez, o impedisse de correr. Com o fogo cruzado sobre si, Leonardo avançava lentamente. Vinha na minha direção. Até hoje me pergunto se ele me viu ou se apenas se dirigia para aquele local por coincidência.
A progressão era lenta e contrastava com a intensidade do combate. No instante em que pensei em ajudá-lo, um soldado alemão percebeu o que acontecia. Sem que ninguém pudesse fazer nada, ele ergueu sua luger, fez a pontaria e disparou. Para a sorte de Leonardo, o tiro passou longe. Impaciente e visivelmente contrariado, o mesmo soldado sacou sua metralhadora e deu uma rajada. Dessa vez não deu para Leonardo. Do local onde eu estava, assisti àquela cena, impotente. Vi que os disparos atingiram a perna direita de meu amigo. O olhar de Leonardo estancou e todos os seus músculos se contraíram. É uma imagem que vou guardar comigo por toda a vida, senhora. O olhar da morte.
Do nosso lado alguém disparou contra o soldado alemão, que caiu inerte. Nesse instante, eu corri até Leonardo, ignorando todos os meus instintos. Não queria acreditar que era tarde demais. Passei um de seus braços sobre meu ombro e puxei-o para um local abrigado. Ninguém pareceu nos seguir. Recostei meu amigo em uma árvore. Ele ainda estava vivo. Apliquei-lhe um torniquete e fiz com que ele se deitasse. Seu olhar começava a ficar turvo, mas eu pude, ou eu quis, acreditar que ele me entendia. ‘Vou buscar ajuda’, disse eu. ‘Você não vai morrer’. Eu tentava me convencer daquilo também. A troca de tiros continuava, mas consegui me esgueirar pela floresta e atingir o local onde nossos homens haviam se reunido. Tentei retornar com um grupo de padioleiros e um enfermeiro ao local onde havia deixado meu amigo, mas a troca de tiros nos deteve por todo o dia. Assim como nós, também os alemães conseguiram reforços.
Somente à noite conseguimos debelar o ataque deles. Desapareceram na escuridão, do mesmo modo como haviam chegado. Organizei uma pequena equipe de resgate para buscar Leonardo. Tinha esperanças de encontrá-lo vivo. A escuridão, contudo, além da chuva, tornou nosso intento impraticável. Poucas vezes vi uma noite tão miserável e escura. Eu não podia mais dizer se o caminho era este ou aquele. Fui me desesperando por causa do atraso, sabendo que cada minuto que demorássemos podia ser fatal ao meu amigo. Não desisti. Precisava encontrá-lo, nem que fosse apenas para ter certeza de que tinha morrido. Os homens que me acompanhavam foram admiráveis. Estavam arriscando suas vidas por alguém que mal conheciam.
Jamais conseguimos. Nos dias seguintes um novo posicionamento da tropa alemã tornou impossível chegarmos ao local onde Leonardo jazia, agora morto provavelmente. O nosso regimento se deslocaria também e, com a chegada do inverno, eu não teria outra chance de resgatar meu amigo. Imaginei como teriam sido seus últimos momentos. Torcia para que ele tivesse simplesmente adormecido, que não tivesse sofrido demais.
A guerra ainda iria longe, alheia às tristezas. Como a senhora deve ter escutado, em Monte Castello a FEB passou por um grande teste. Depois, em Montese vivemos o combate mais sangrento de toda a campanha, onde sofremos mais de quatrocentas baixas em apenas três dias. Eu paguei minha cota nessa jornada, sofrendo um ferimento que iria me tirar da linha de frente.
Hoje admito que fiquei aliviado. Quer queira, quer não, era uma garantia de que eu iria sobreviver. Mas, naqueles dias eu não consegui lidar com isso. Sentia-me como um covarde por ter abandonado minha companhia, por ver homens que eu conhecia tomarem parte em investidas arriscadas. Depois de Montese nossa tropa partiu ao encalço dos alemães no vale do Pó, que batiam em retirada, estraçalhados por tantos anos de guerra.
O disparo de que fui vítima acabaria por me provocar uma lesão na bacia. No início, uma operação parecia ter bastado para solucionar o problema. Tanto é que não fui repatriado. Permaneci à retaguarda, com o pessoal que definia e planejava as operações. Assim que eu me recuperasse seria enviado de volta ao regimento.
Não houve tempo para tanto. A rendição alemã veio em 2 de maio de 1945, há apenas um mês, e as hostilidades cessaram. Houve muita festa e comemorações. Muitos esqueceram dos votos matrimoniais e se entregaram a prazeres redentores, devo lhe dizer. Outros começaram a beber sem limite para terminar. Os homens sentem-se vivos. Passaram por um teste de proporções terríveis e sobreviveram. Não se pode culpá-los por querer celebrar a vida.
Assim como tantos outros, eu também estou mudado, admito. Como muitos, tive a clara visão de como deve ser o inferno. Mas, o que mais me marcou em toda esta campanha foi a perda do Leonardo. Tão logo se calaram as baterias, eu solicitei autorização ao comando da FEB para deslocar-me com uma patrulha ao vale do Serchio. Dias depois me forneceram uma viatura e um grupamento de escolta. Regressamos até aquela fábrica de munições onde tínhamos sido emboscados. Quando chegamos, o dia estava claro, um céu azul como eu poucas vezes testemunhei. O lugar estava totalmente destruído, com pilhas de tijolos e marcas de tiros nos escombros que teimavam em permanecer em pé. O reboco soltava dos muros e a janela de onde havíamos saltado tinha desaparecido, juntamente com a parede da casa. O telhado era agora um monte de madeira podre e retorcida. Havia um odor fúnebre pairando em cada palmo. A vegetação tinha crescido, mas as marcas do combate ainda estavam nítidas. Era até estranho ver aquele cenário lúgubre envolto por uma brisa calma, onde se ouviam pássaros cantando ao longe.
Forçando a memória, tentei recordar os momentos daquela triste madrugada. Os tiros zunindo, os alemães gritando, o desespero de nossos homens em fuga. Podia ver-me saltando da janela e correndo para a vegetação que me abrigaria. De lá eu assistiria ao desespero de Leonardo, seus olhos cravados nos meus, tentando chegar à segurança.
Reconhecia os lugares agora. O exato ponto onde Leonardo fora alvejado estava a poucos metros de mim. Abaixei-me para ter uma noção precisa do que ele via naquele momento. Mais adiante, pude identificar o local em que eu me abriguei e para o qual, momentos mais tarde, levaria meu amigo em busca de proteção. Dava mais ou menos uns cinquenta metros. Levantei-me e caminhei de modo decidido até lá, passos apressados. Vasculhei a área e logo o descobri.
O corpo de Leonardo, ou o que restava dele, jazia intocado, próximo a um pinheiro, exatamente na posição em que eu o havia deixado seis meses antes. Olhei para sua perna direita e vi o torniquete. A decomposição já avançava sobre ele, mas eu pude reconhecer suas orelhas de abano. Examinei seu uniforme e recolhi seus pertences. O respeito pelos mortos não é exatamente uma prioridade na guerra e eu precisava evitar que a senhora não fosse privada dos objetos que o acompanharam até o último instante. Relógio, aliança de noivado e até uma correntinha com um crucifixo. Guardei tudo para depois entregar à senhora. Reparei que um dos braços de Leonardo estava cruzado sobre o peito, a mão escondida sob a jaqueta, como se ele, no momento derradeiro, tivesse buscado alguma coisa no bolso interno. Ali encontrei a foto que ele havia me mostrado no início da guerra, aquela em que ele e a senhora posavam de chapéus diante de um cenário bucólico. Havia também uma carta endereçada à senhora.
Preciso confessar-lhe que nesse momento eu me abaixei e chorei. Não pude evitar. As lágrimas foram mais fortes que qualquer vergonha que eu pudesse ter em escondê-las. Os soldados que me acompanhavam respeitaram a minha dor. Compreendiam perfeitamente a angústia da perda.
Eu sabia que durante a guerra muitos tinham perdido amigos e até parentes, mas aquilo tinha acontecido comigo. Não era uma história que me contaram. Eu vi, depois de seis meses e um longo inverno, o corpo de meu melhor amigo do exato modo como eu o havia deixado.
O que me consola é saber que fiz tudo para salvá-lo. Se não pude resgatá-lo com vida, ao menos voltei para salvar sua memória.
Tenho certeza de que ele faria o mesmo por mim.
Encerrando, esclareço à senhora que os objetos que Leonardo guardava consigo quando o encontrei, em especial a correspondência que lhe era destinada, juntamente com a foto que mencionei, seguem anexas a esta carta. Os demais pertences já seguiram pelo serviço competente do Ministério da Guerra, devendo ser lhe entregues oportunamente.
Como eu disse no início, escrevo esta carta para que a história não se esqueça de Leonardo, assim como de outros bravos soldados como ele. Sei que ainda estou contagiado pela notícia do fim da guerra, mas gostaria de pensar que os brasileiros podem se orgulhar muito de nós. Tenho plena convicção de que ajudamos o mundo a se firmar como um lugar bom.
Coloco-me à disposição da senhora para qualquer eventualidade, esperando ser de alguma utilidade se necessário. Tenha certeza de que somos irmãos na dor da perda.
Sinceramente,
Evaristo José Pereira.
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