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O Copiloto. Parte 2

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Uma segunda vez em que fui tangido pelo copiloto foi no regresso de missão no Vale do Pó, em condições de mau tempo. 
Vínhamos no colo do controle radar de terra que nos guiava por dentro das nuvens em vôo por instrumentos, em esquadrilha. Comandava o Capitão Lafayette, com o Keller de número dois, eu de três e o Mocelin de número quatro. 
A primeira proa ditada pelo controle de terra era um rumo paralelo aos Apeninos, ainda no lado do inimigo. Deveríamos primeiro atingir certa altitude, para depois, sempre comandados pelo radar, infletir para Sul-Sudoeste, em direção a Pisa. 
O vôo era penoso, pois havia alguma turbulência. Cansava manter a esquadrilha unida para não desgarrar do líder. Em dado momento, começaram A espocar, dentro das nuvens, salvas de 88 de algumas das baterias antiaéreas alemãs, já então reguladas pelo radar. 
Numa das ações evasivas executadas pela esquadrilha, sobrou meu ala, o Mocellin. Perdeu-nos de vista dentro do espesso caldo cinza da nuvem e prosseguiu, por conta própria, guiado pelo radar de terra. Numa outra guinada mais brusca, sobrei eu. 
De certa forma aliviado do esforço de me ter de manter colado no guia, fiz um apanhado do instrumental de vôo e, comandando minhas próprias atitudes, pedi instruções ao controle radar, que m'as forneceu em termos de nível 'de vôo e proa. Pela direção que me indicou, deduzi que já iniciara a travessia do maciço dos Apeninos. Voava tranqüilamente a uns quinze mil pés dentro do cinza denso do colchão de nuvens. O perfil das pontas das asas não era nítido. Tudo em ordem e funcionando bem. Só a gasolina é que já não era muita. A missão havia sido longa e os percursos, por instrumentos, mais demorados. 
Um pouco preocupado com a gasolina, resolvi comunicar-me com COOLER -código da estação de Radar de terra - para averiguar sobre a distância a que eu estaria da Base. 
Tentei inutilmente -silêncio total. Tive uma estranha sensação de desamparo.
 Observei para mim mesmo que vinha sendo, de fato, silencioso e sereno aquele meu vôo, desde o único diálogo que mantivera com COOLER, depois de estar por conta própria Não ouvia nem COOLER nem a comunicação de outras esquadrilhas; o que seria de esperar naquelas condições de tempo. Passei para outros canais do transceptor VHF. Nada! Conclusão simples e incômoda: pifara o meu único meio de comunicação com a terra.
 Como, já nesta altura, a gasolina era pouca, precisava tomar decisões urgentes. Mentalmente procurei reconstituir os rumos que nos haviam sido determinados pelo controle de terra, para deduzir minha posição aproximada. Cálculos de orelhada, nada confiáveis. Pela última proa e pela altitude, sabia apenas que devia estar atravessando os Apeninos, em direção ao Sul. Calculava a gasolina para mais ou menos meia hora de vôo.
 Resolvi: mais dez minutos no rumo Sul para aumentar as chances de já ter transposto a serra, depois rumo oeste, para a direita, em direção ao litoral de Livorno, descendo, e, logo que furasse o colchão, já sobre o mar, meia volta volver e procurar chegar a Pisa que fica próxima ao litoral. 
O plano tinha como pontos principais: primeiro descer sobre a água, sem perigo de colisão com os morros, pois não sabia qual seria o teto, e, segundo, caso acabasse a gasolina antes de alcançar o litoral, seria mais fácil pousar de papo na água e me safar no bote salvar vidas inflável que levávamos no assento do pára-quedas. Assim fiz. 
Os dez minutos no rumo sul pareciam não passar, enquanto me atormentavam as dúvidas da transposição dos Apeninos e da marcação do combustível. Afinal, guinei para a direita, tomando a proa oeste, rumo ao mar. Será que já passei da serra? Será que vou furar o colchão sobre o mar? Será ... fui interrompido nestas aflitivas conjecturas por um valor mais contundente que se alevantava - começou a piscar aquela luz vermelha do painel, conhecida como o olho da bruxa, que indica ao piloto dever esgotar-se o combustível num prazo aproximado de quinze minutos! Estaria neste momento ainda a uns três mil metros, descendo para oeste. Não havia mais escolha, pois precisava passar para debaixo do colchão, para poder tomar outras decisões. 
Poderia, evidentemente, também manter-me em vôo nivelado, esperar a gasolina acabar, ou até mesmo abandonar o avião de pára-quedas naquele momento e torcer para cair do lado dos aliados. 
Havia, entretanto, vários tipos de obstáculos de ordem subjetiva para que eu pudesse adotar esta solução. De saída, eu nunca havia saltado de pára-quedas, e despejar-me naquele espaço cinza sem horizonte, sem céu nem chão, era forte demais para o meu aparelho gástrico.
 E, depois, eu não sou feito do estofo de um piloto sueco ou teutônico que consegue, numa hora destas, processar todos os dados do seu computador de cachola e concluir: Continue no rumo Sul para ter certeza de estar sobre território amigo; mantenha sua altitude para evitar os obstáculos topográficos; duas coisas podem acontecer - você entra numa área de melhor visibilidade e resolve à vista da nova situação ou você salta de pára-quedas quando a gasolina acabar ... Não, positivamente, não sou feito deste estofo. 
E, ainda mais, aquele negócio de saltar de pára-quedas, assim a sangue frio, além de ser muito chato, ainda tinha implicações de ordem sentimental de profundas raízes. E a garça? E o meu P-47? Ciao bello, que eu fico por aqui ... ? Tout court! Que é isso! Pois aquela garça era minha, e eu também pertencia a ela, com o seu A4 meio desalinhado pintado no capô. 
Além do mais, aquele P-47 me levava e trazia, inteiro, das missões, mesmo quando o acertavam de mau jeito, como naquele dia em que pousou em Pisa banhado de óleo que lhe escapava do motor atingido, mas que, até me depositar seguramente na pista, havia continuado pulsando firmemente, sem esmorecer. 
Ou como naquela vez em que, espicaçado pela desfaçatez com que via oito bocas de 20 mm perseguirem o Keller e o Menezes, resolvi acabar com aquele carnaval e expus o meu A4 a riscos desnecessários, eliminando-as a metralhadora, juntamente com o Armando, quase entrando pela posição adentro, mas levando, de troco, muita mecha.
 Ainda assim, a garça me trouxe de volta, incólume, mesmo com as asas perfuradas e com fitas de munição de metralhadora dependuradas como vísceras metálicas. E, depois, além daquele A4 ser meu cupincha, meu curriola, ele não pertencia só a mim. Ele pertencia ao Sargento Argola, seu mecânico, a seu auxiliar, Cabo Torres, e a toda a equipe que o municiava e dele cuidava. E, como logo perceberia, não era só o A4 que pertencia a eles, era eu tambem, assim como todos os pilotos pertenciam às equipes de terra, da mesma forma que a meninada sempre pertence a toda a família e aos seus agregados. Por isso, cuidavam com tanto carinho de nós pilotos e dos nossos aviões. 
As nossas ações e o que acontecesse conosco podia ser motivo de grandes alegrias ou de grandes tristezas para aquela grande família que aguardava, sempre ansiosa e preocupada, o nosso regresso das missões. Não pretendo inferir que todas essas considerações se houvessem apresentado analiticamente no momento de decidir o que fazer. Não. Tudo aquilo já estava embutido na gente e representava a nossa verdade.
 No momento de decisão, parti, forçosamente, das minhas verdades. Por isso, nada de saltar de paraquedas, nada de rumo Sul. Continuar para Oeste e, como o olho da bruxa não sossega, nariz embaixo para varar esta porcaria destas nuvens o mais depressa possível. Por que esta decisão? Intuição, só isso. 
Reduzindo um pouco a compressão e a rotação para esticar o combustível, meti o nariz para baixo, como num mergulho raso. Dois mil metros, mil e quinhentos, mil metros - achatando um pouco a descida e o coração batendo na garganta, quase no gogo - oitocentos metros, seiscentos metros e nada de furar o colchão! Uma coisa era certa - a parte mais alta do espinhaço dos Apeninos já havia ficado para trás. Quinhentos, quatrocentos ... o cinza compacto e homogêneo começa a assumir umas sombras mais escuras. 
Todo piloto conhece esse sintoma de que se está alcançando a base das nuvens. É curioso que dentro da nuvem, mesmo densa, a luminosidade é maior do que na sua base. Daí o escurecimento quando se baixa para a base. 
Nesta altura, sem comunicação rádio que permitisse fazer a correção alimétrica do instrumento, aquela indicação de quatrocentos metros poderia variar, na realidade, para mais ou para menos. Trezentos metros. Indícios nítidos de que chegava à base do colchão. Segundos angustiantes. Onde estaria? Já havia alcançado o mar? O corpo todo tenso como um nó e as têmporas pulsando de encontro aos fones emudecidos. 
Não dá mais para esperar! Nariz para baixo e vamos ver logo que bicho dá! Duzentos metros ... não estou sobre a água! Cento e cinqüenta - vejo o verde da vegetação - cem metros - furei!!! Volto a respirar. 
Baixo mais um pouquinho para livrar as rebarbas da base das nuvens. Chuva fina, visibilidade de dois a três mil metros. Acabo de desatar o nó e de me acomodar para nova situação -um cisca relativamente confortável. Teto de uns cem metros, visibilidade razoável, garoa. Estou num vale, sobre um rio. Não sei como nem por que aquele rio corre exatamente para oeste, o rumo em que vinha descendo. Dos dois lados do vale os morros penetram as nuvens. Estou desta forma voando por dentro de uma espécie de calha topográfica, relativamente estreita, visto que, apesar da pouca visibilidade, podia distinguir-lhe os limites à esquerda e à direita. Tudo isso com uma tampa de nuvens maciças a uns cem metros de altura do solo.
 O rio acompanhando o vale, de leste para oeste, portanto em direção ao litoral. Apesar da insistência da luz da gasolina eu já tinha mais calma para avaliar a situação. Aquele rio era, sem dúvida o Arno, o mesmo que passa na porta do Albergo Nettuno em Pisa, nosso alojamento. Estava a caminho da casa.
 O problema passava a ser bem mais simples -seguir o rio, no cisca, e rezar para que a gasolina desse para chegar ... eis que surge na margem esquerda uma pista! De bom tamanho e, como o avião estava leve, sem bombas e sem gasolina, não havia o que esperar. Trem embaixo, flaps totalmente estendidos, reduzir o passo da hélice, acelerar para manter a velocidade de aproximação, dependurado no motor, uma pequena entortada para alinhar com o eixo da pista e ... terra firme! 
Surge um jipe quadriculado de amarelo e preto, o tradicional Follow me (siga-me) e me guia para o pátio de estacionamento. Nesta rolagem sob a chuva miúda o co-piloto deve ter desembarcado, deixando-me novamente por conta própria. Segui aquele jipe, taxiando devagar e com as pernas bambas, a ponto de só conseguir controlar os freios com certa dificuldade. Era uma base de esquadrões ingleses da RAF. 
Convidaram-me para tomar chá na sala dos pilotos. Contei o que houve. Localizei-me na carta da região. Estava na margem do Raio Arno, a quinze minutos de vôo de Pisa, a nossa base. Tive certa dificuldade em convencer os ingleses a abastecerem meu avião e a deixarem-me seguir caminho para casa. Como? Com aquele tempo disgusting, numa tarde que já estava perdida! Tão mais sensato confraternizar, reconfortando-se com um bom brandy! A minha ânsia de voltar à Base os acabou convencendo de que era inútil apelar para o bom senso de quem de britânico só demonstrava um. relativo domínio do idioma. Agradeci a acolhida e, pau no burro ... 
De tanque cheio e sabendo por onde andava, aqueles quinze minutos de vôo rasante até Pisa foram um salutar passeio para sacudir as aflições anteriores. Um cisca consciente e altamente técnico como os daquele meu Brasil distante. Um cisca confiante naquele meu A4 verde-escuro um pouco arranhado e manchado, cujo avestruz assanhado na bochecha esquerda e o verde e amarelo na cauda os ingleses, como a mim próprio, haviam fitado com um misto de estranheza e de respeito .. 
- BLACK- BALL TOWER. JAMBOCK RED. OVER
- ROGER JAMBOCKTHREE-PANCAKE. RED THREE. CLEAR TO LAND. BLACKBALL
Rolei para o estacionamento. Desta vez as pernas estavam firmes. Desafiei a máscara de oxigênio e exibi a dentadura completa para o Sargento Argola que já estava de pé na asa, a meu lado. 
Junto do avião havia um grupo das equipes dos outros aviões da RED - Alguém gritou. 
- E os outros, Tenente? 
Na salà de operações, fui saber que o Lafayette, o Keller e o Mocellin haviam pousado em outra Base, mais ao Sul. Foram para lá conduzidos pelo radar, porque o teto em Pisa estava muito baixo. Tinham todos chegado bem, sem maiores novidades. Eu, que chegara com a alegria da ovelha desgarrada que se reencontra com o rebanho, fora, afinal, o primeiro a-chegar. 
Primeiro, coisa nenhuma! O co-piloto já me estava esperando no cassino dos oficiais, com um reconfortador copo de uísque ... 
Matéria:
Alberto Martins Torres-Cap Av R/2. 
História da Aviação Militar.
Leandro Dantas.



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